A Chinela Turca ou
Um enólogo lança seu vinho

– Dou-lhe uma notícia, que certamente não espera. Saiba que fiz… fiz um vinho.

– Um vinho! – exclamou o bacharel.

– Que quer? Desde cedo padeci destes achaques etílicos. As atribulações da vida não foram remédios que me curassem, foram um paliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não há mais remédio senão deixá-la, e ir simplesmente ajudando a natureza.

Amigo Leitor, se não reconheceu o título, indubitavelmente terá reconhecido – acima -, uma paródia do texto do inigualável Machado de Assis: o jovem enamorado bacharel Duarte vê frustradas suas expectativas de ir a um baile na casa da viúva Meneses pelo major Lopo Alves. Este chega (inesperadamente) em sua casa com um manuscrito para ser… avaliado. E Duarte – noblesse oblige – terá que fazê-lo.

Está bem. Sem mais delongas, metáforas ou analogias: fiz um vinho! (Ora, direis, mais do que um até…) Que quer? Quero que todos o provem. Que o avaliem. Mas não posso aparecer na antessala dos amigos e cobrar um veredito! E, afinal das contas, também preciso vender – pois se trata de um negócio.

Em última análise, como fazer para que meu vinho seja “conhecido”?

Bem-vindo ao primeiro choque, caro Leitor: você já se perguntou quantas pessoas fazem vinho no mundo? Um pequeno produtor português divulgou recentemente os seguintes dados: em Portugal há 58.000 winemakers (45% dos quais comercializam seus vinhos profissionalmente e a maior parte deles produz menos de 10 mil garrafas por safra). Na Alemanha há 69.000 (28.000 profissionais). Na França você encontrará cerca de 115.000 winemakers (27.000 profissionais). Na Espanha, 280.000 (dos quais pelo menos 60% fazem vinho por hobby). Na Itália, então, há um milhão de winemakers (e apenas 20% são “profissionais”). Paro por aí.

Evidentemente essa realidade nos é estranha e afastada: quantos de nós têm, no quintal, parreiras das quais podemos extrair boas (ou quaisquer, para falar verdade) uvas e fazer nosso vinho pessoal? Quantos de nós guardam (e pedem aos amigos que guardem) garrafas vazias de vinhos para encher com seu próprio produto – frequentemente pisado a pé em tinas armazenadas em alguma dispensa? Quantos de nós têm como programa de fim de semana encher e enrolhar os próprios vinhos que fizeram? Quantos de nós podem ir à cave improvisada e tirar uma garrafa de sua produção artesanal para degustar em um jantar despretensioso com a família e com os amigos?

O res mirabilis! Esse é o mundo maravilhoso dos vinhos. Quanta riqueza e quanta diversidade! Quanto suor, intimismo e aconchego despretensioso! Mas aqui – miserere mei – termina o romantismo. Volto à reminiscência do major Lopo Alves: saibam que fiz… que fiz um vinho…

Como divulgá-lo? Como fazer que ele possa ser encontrado (e consumido)? Como superar a penosa burocracia do governo e a resistência dos distribuidores (que só se interessam por marcas “conhecidas”; sinônimo de “poderosas economicamente”)? Aqui se abrem as portas do Inferno. E, olhando para dentro se observa – ao contrário da riqueza e da diversidade informal do mundo do vinho -, a imensa pobreza do nosso universo de distribuição e consumo.

Caro Leitor, se esta página encontrou seus olhos – e se algum mistério permitiu que uma empatia entre nós se concretizasse e que você chegasse a ler essas linhas até aqui -, provavelmente terá uma paixão pela gastronomia e muito possivelmente por vinhos. Conhecerá, por certo, o charme e a mística em torno dos vins de garage ou a renhida batalha dos “terroiristas” contra a ditadura da globalização do gosto. Isso, para mim, já faz de você uma pessoa muito especial. Pois gostaria que soubesse – gostaria de revelar – que sou um pequeno príncipe: fiz um vinho! E que esse vinho é tão único quanto acredito ser eu mesmo. Mas que, atravessando o deserto e subindo as montanhas, encontrei um jardim de flores – se não iguais – pelo menos muito semelhantes à minha.

E dessa “descoberta” brotou a sensação – e por que não dizer? – a certeza de que não sou um príncipe muito importante… E de que preciso aprender a lição da raposa: se eu quiser que você brinque comigo, terei, antes, que cativá-lo ou – quem sabe? – seduzi-lo.

Talvez essa seja a maior encruzilhada da vida: todos queremos ser amados. Mas serei amado por aquilo que sou (ou que acredito ser) ou pela minha capacidade de encantar? Ou até mesmo de encantar quem consiga encantar não importa quem? Em síntese, devo tentar ser “autêntico” ou seguir uma cartilha de marketing?

Agora, com uma garrafa debaixo do braço, sou como o major: conseguirei agradar?

Dei às uvas o melhor cuidado que a sabedoria dos agricultores e a tecnologia tornaram possíveis. Caminhei incansavelmente pelos vinhedos provando as frutas e, analisando o clima a fim de escolher o melhor momento para que fossem colhidas. Orientei e ajudei a colheita. Participei da seleção de uvas na esteira. Garanti que os tanques estivessem em perfeitas condições para a maceração. Participei, com a equipe, da rotina diária (e noturna) do pigeage. Escolhi as melhores barricas. E velei – no cimento frio da adega – cada uma dessas barricas, provando os vinhos até que atingissem seu potencial. Escolhi garrafas, rolhas excepcionais e participei do engarrafamento. Orientei a produção dos rótulos no escritório de design e na gráfica. O que não couber ao acaso – em méritos e deméritos – é culpa minha (direta ou indireta).

Mas… Conseguirei agradar? Segue Lopo Alves: Sei que é inteligente e lido; há de me dizer francamente o que pensa (…). Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se achar que não é bom, diga-o sem rebuço.”

O resto do conto você – caro Leitor – já conhece: o bacharel Duarte “adormece” e, ao invés de entabular um diálogo com um texto enfadonho, vê-se envolvido em uma aventura única. E sentencia, ao final:

“Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco”.

Viva Machado de Assis!

Como o vinho será avaliado? Um bom vinho é como boa literatura. Tem a capacidade de nos transportar para outros mundos e nos fazer experimentar tantas sensações quanto nossa imaginação o permitir. Forçosamente – como nos ensina o bacharel Duarte -, o espetáculo não está nem no enólogo e nem – acredite, caro Leitor -, na própria taça. O espetáculo está em quem prova.

Deguste, portanto, e escreva – com franqueza e com franqueza rude – para a redação…

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