Que nariz é esse?

Com uma elegância que traduzia muitos anos de prática, ela levou a taça ao nariz, fechou os olhos e aspirou profunda e lentamente. Afastando o nariz da taça, girou o vinho algumas vezes e repetiu o ritual. Tomou um gole, cuspiu, e em seguida — como que em transe — olhou para mim e perguntou:

Londres, 22 de abril de 2015,

— Have you spotted the lively tension between this aggressive boysenberry acidity and the suave hints of marygold flower at the finish?

Eu que estava a ponto de escrever (em inglês, evidentemente), “notas de goiaba” parei como que abatido por um tiro de Colt 45. Mas em seu transe, indiferente de eu estar (ou não) concordando — ou mesmo escutando o que teria dito —, ela depositou a taça sobre a mesa repleta de garrafas cobertas com sacos (que escondiam as identidades das marcas), pegou a prancheta negra com a logomarca do evento e escreveu seu vaticínio (que, mais adiante, seria revelado a todos os outros juízes).

Não. Não estou em Delphos. O cenário é a International Wine Competition, em Kennington, Londres, onde ambos — ao lado de outros três — formávamos a banca juízes. Aquela rodada de degustações (às cegas) valeria medalhas. E, com as medalhas, quinze minutos de fama para muitos vinhos.

Tentando lembrar-me — nem tanto dos aromas! — mas apenas do que seriam boysenberries e marygold flowers, permaneço paralisado. Os olhos opacos. Tudo em vão: as traduções não aparecem (e tampouco imagens das frutas, flores, ou seja lá o que forem). Combato, imediatamente, a envergonhada e rancorosa tendência de descrever esses vinhos com suas elegantes (e exotéricas) notas de flor de jabuticaba, reminiscências de sementes de graviola e de compota de mangaba. Dou-me conta de não ter nem mesmo memória olfativa desses aromas…

Mas “que nariz é esse?” (escreveria Renato Russo se tivesse vivido o suficiente para preocupar-se com enologia). Descrições de vinhos sempre me impressionaram. Penso que, na verdade, deveriam converter-se em um gênero literário em si mesmo. Flanaríamos por livrarias procurando contos, novelas, romances, biografias e… descrições de vinhos. Não nos perguntemos, neste momento, se elas têm alguma coisa a ver com os vinhos em si mesmos. Ou seja: não nos preocupemos se vamos encontra-las nas estantes de “Ficção” ou de “Não-Ficção”. No entanto, que fique claro que se trata de um gênero que supõe extrema criatividade, memória e vasta erudição.

Como que abduzido por um ethos proustiano, lembro-me de ter escutado, aos pés da Cordilheira dos Andes, um colega perguntar — sem dúvida tentando impressionar a jovem e bela guia chilena que nos ciceroneava a visita à bodega e à degustação —, se ela percebia, em um determinado sauvignon blanc, os delicados aromas da haste quebrada da flor de kiwi? Igualmente lembro de uma conversa com Eric Beaumard — vice-campeão mundial de sommellerie em 1998 —, em que, com um franco sorriso, ele dizia que muitas vezes se divertia com o público afirmando coisas tais como “tal vinho é rústico e exsuda notas de suor de rinoceronte”. Ria de como os “mortais” se maravilhavam com isso! Eles que só conheciam rinocerontes de longe; do zoológico, dos documentários da National Geographic, ou de imagens de Dührer…

E é para maravilhar-se:  Beaumard, no mesmo contexto, afirmou-se capaz de reconhecer cerca de pelo menos 400 entre os (pouco mais de) mil aromas que um nariz humano normal é capaz de identificar. E alguns desses aromas — até mesmo aromas respeitados — podem soar estranhamente à sensibilidade “não adestrada” dos não-enófilos. Exemplos? Titica de galinha, xixi de gato, cachorro molhado, meias suadas, querosene, caixa de charuto, chiclete, piche, etc. Disse “aromas respeitados”: ninguém seria intimado a duelar com o enólogo do prestigiado Château Beaucastel se revelasse ter percebido um cheiro de galinheiro em seus vinhos. Au contraire, a isso provavelmente se juntaria um cumprimento pela complexidade adicional fornecida por uma bela administração [!?] da brettanomyces.

E aquele cheiro de querosene em um velho (raro e prestigiado) riesling alemão? Qualidade ou defeito?

Manuais de marketing costumam pregar que, em primeiro lugar nas decisões de compra de um vinho, estão as descrições no contrarrótulo. Outra questão delicada: vinhos são vivos. Uma descrição feita em um determinado momento pode estar bem longe daquilo que o vinho é hoje (ou até mesmo de quando foi adquirido). Sem falar nas condições de transporte e armazenagem às quais os vinhos foram submetidos ao longo da vida.

Em condições ideais, no entanto, observaríamos uma evolução “natural” onde aromas “primários”, “secundários” e “terciários” coexistiriam (ou se sucederiam) em uma tensa e (des)armônica [?] convivência digna de uma definição de dialética de um livro texto alemão em alemão! (Lembro-me, a esse respeito, das doutas explicações em torno do verbo aufheben e de suas sutilezas…)

Assim, aos aromas “primários” — relativos à fruta — juntar-se-iam os aromas “secundários” derivados dos processos de fermentação e de envelhecimento. Finalmente, uma camada de aromas “terciários” revelaria aquilo que se desenvolveu nos vinhos em seu estágio em garrafa. E, nesse sentido, a diferença entre “aroma” e “bouquet”; o segundo, oriundo do processo de envelhecimento.

É claro que — dada a evolução do vinho —, suas descrições vão refletir os limiares (subjetivos) de percepção daqueles que degustam bem como o estado de sua evolução (considerados armazenagem, transporte e fenômenos microbiológicos aleatórios). Duas garrafas estão sempre banhadas em um rio heraclitiano: elas jamais serão iguais!

Volto minha atenção outra vez para as nove garrafas etiquetadas e alinhadas e envoltas em plástico negro a minha frente. Pessoas diferentes, vinhos diferentes de estilos variados, limiares de percepção diferentes, culturas diferentes… Um mundo me separa da juíza ao meu lado e outros tantos mundos me separam dos outros três juízes. Tantas variáveis e tão poucas medalhas…

Saio do meu transe. O fato de eu não ter correlacionado a acidez da boysenberry àquele vinho ou de não ter percebido a etérea sugestão de calêndulas teria impedido que minha avaliação fosse correta? Termino de escrever minhas notas de degustação e indico o vinho para uma medalha. Minha indicação será comparada com as impressões dos outros juízes. Caso não haja consenso, uma discussão se seguirá e o resultado final sairá. Democraticamente. Assim funcionam as competições: uma banca pode outorgar a medalha máxima. Outra, para o mesmo vinho, descartar a premiação porque — apesar de excelente —, não demonstra “tipicidade”…

Quem não se conformar, que se queixe ao Bispo.

Na mesma competição estão meus Krasia May — Malbec e Merlot — 2010. Não tenho esperanças de saber — antes da divulgação dos resultados — se foram cogitados para medalhas e muito menos quais, dentre os mais de 350 juízes, os estariam avaliando. Em um devaneio, me pergunto quais descritores teriam sido aplicados a eles pelos juízes…

Mas se alguém, muito eventualmente, percebesse longínquas notas de “xixi de gato” eu — se pudesse comentar —, provavelmente agradeceria (enrubescendo), de coração, a lisonja… Ao mesmo tempo, pediria desculpas: às vezes passo o dia inteiro no vinhedo e o banheiro mais próximo fica a pelo menos dois quilômetros de distância…

Deixe uma resposta